O Homem Gabirú

                                                Meu avó era um exímio contador de causos. Contava causos e quando morreu aos 102 anos, já havia recontado pelo menos uma centena de vezes, cada um deles, para o seu séquito de netos, bisnetos, parentes amigos e agregados. Houvesse folêgo... Quando alguém tentava um argumento, ele era taxativo...
Vou assuntar de novo, para ficar na memória, - que ele nunca perdeu.
Assim, mulas sem cabeças, veados de ouro que falavam, cobras saltitantes, caiporas ou curupiras, assombrações de todos os tipos nos tiravam o sono, transformavam nossos colchões de palha - agulha, numa latrina mofada e promovia uma solidariedade digna de pena. Seis ou sete guris agarradinhos numa cama só, mijados até o pescoço, para não morrer de medo.
Quando a noitinha vinha caindo, ao redor da mesa, aceso o lampião a querosene, que enchia as narinas e os pulmões com uma borra preta, as figuras dos adultos tremulavam nas paredes.....Começava a seção bate papo.
Isso não é conversa pra criança...!
Eram assim as coisas nos tempos de dantes. Criança não era gente. Era coisa... Não podia ouvir, nem falar, não via, tampouco opinava.
Comida a janta, feijão, carne de tatú (argh!) e farinha de mandioca, bebíamos água salobra e íamos para a cama.
Aqueles capins infernais a furar nossos corpos...Ai sai pra lá... 
A disputa por espaço mais confortável na cama.
Aquieta cambada de capetas...tão com o bicho carpinteiro no corpo?....esses mininos! 
O louro gritava...Capeta,capeta! Bicho, bicho! Cambada, cambada...
A avó gritava... cala boca louro dus infernus.
Infernus! Infernus! Loro, loro....
Então,  quando o louro aquietava no inferno e os capetas fingiam dormir, as gentes grandes puxavam os bancos de madeira que meu avó, um bicho carpinteiro, fazia, e começavam a falar coisas que "minino não ouvia"... 
Meninos não ouviam direito pois eles falavam ao mesmo tempo, cortavam a prosa do outro, avídos por falar, cada qual querendo aparecer mais, impactar. Droga!
Nos esqueiravámos feito lagartixa predando um inseto....lentamente. De gatinhas, sem quase respirar, iámos-nos chegando ao foco do converseiro, com as orelhas em pé.
Meu avô... Vou falar! Minha mãe...Sou toda ouvidos!
A mãe era engraçada na linguagem figurada, cheia de orelhas coladas pelo pescoço, peitos, cabeça... Toda ouvidos. Alguns, sebosos de cera amarela.
Num lavou direito essas orelhas menina? Vou te pegar com a bucha de piaçava!...
Uma tortura inesquecível!
O capeta primo mais velho, que morava com eles conhecia todas as estórias, de cor e salteado. Quando ia chegando o ápice, infernal, assombrava com uma careta, um esgar, acentuado pela olhar zarolho. Depois ria-se de rolar... o desgrenhado.
Os outros menorezinhos estavam de passagem para pegar peso, depois iam embora. Em geral seus pais estavam numa miséria maior! 
Mamãe,  nada  convencional... de modo que nunca conheci meu pai, nem lhe soube o nome, passara nele uma borracha, e em sua vida também.
O avô aparentemente não se ressentia, a avó não se encantava com ambas.
A mim, chamava de "pacote", a mãe, de "quase kenga".
Talvez não o fosse por completo, pois sustentava a todos com seu trabalho árduo, levava-lhes comida, dinheiro e roupas  para sobreviverem ao sertão seco, escasso de víveres, à miséria rotunda...
Na tosca mesa, o assunto era este, a carestia, e, o terror que causava era real.
Dava dor de barriga....
O que é carestia primo? Não sei, mas não é bom não...Acho que é igual a morte. Dindinha diz que tudo está pela hora da morte.
A mãe do primo havia morrido no parto dele. Os outros irmãos, distribuídos aos parentes.
Olha prá mim primo. Tô olhando. Um olho virado pró infinito, o outro às vezes, na minha direção. Com o qual me enxerga? Com os dois! Mas o outro está virado prá cima! Não enche jumenta! Inda falam que tu é inteligente.
Sou?  É  jumenta. É isso que é. Assim, ele ganhava o "round".
Tinha noites que deixavámos os pequenos dormirem e íamos, somente nós dois, para baixo da mesa. 
O oleado de dálias em V cobria as nossas figuras.O primo fizera com um cigarro de palha aceso, um furo no meio das flores para poder espreitarmos melhor. 
A situação piorava. Comadre Eulália, havia ficado viúva. Sequer tinha farinha para comer. O finado marido, artista, havia deixado uns quadros para vender, mas por ali ninguém tinha dinheiro não. Quem tinha uns trocados comprava feijão.
Dia seguinte, fomos levar uma cuia de farinha e uma lasca de carne de sol e vimos as pinturas.
Eram coloridas como  a vida viçejante de uma pessoa feliz ! Retratavam os pastos, o milharal, o vaqueiro e seu rebanho, o rio caudaloso, a ponte por sobre o rio, o trem que passava bem no meio da feira, as roças de melancias. Tudo o que por ali, há muito não havia. 
Eulália, sentada no alpendre, esquálida  e vestida de luto, parecia uma assombração. 
O terço rezado diuturnamente,ensebado, nas mãos...
O polegar da mão direita, segurando uma conta enegrecida...
Olhos fixos na trilha defronte a pequena casa de pau a pique, como se a esperar alguém.
O primo gritou ... Ó de casa...
Que bom vento te traz?
Dindinha pediu que viesse, comadre... Apois, entre...
Quem é a galega?
Minha prima de São Paulo! 
Pediu para que eu me achegasse mais perto e então fez algo que deixou profundamente impressionada, apalpou meus braços brancos e gordos, tocou os cachos dos meus cabelos.
Puxava-os delicadamente e depois os soltava feito molas. Sorriu um meio fio e suas gengivas não possuíam dentes.
Então vosmecê é filha de Ana? Parece um anjinho. Gordinha, galeguinha e linda...
Uma menina da cidade!
Não consegui pensar em nada para lhe dizer, senti - me desconfortável... mas agradeci. Obrigada!
E por cima educada!
Olhei  para os seus olhos e eles cobertos por uma névoa branca, eram opacos como a pele negra, recoberta por uma poeira cinza...As mãos de dedos com nós largos e ossudos, estavam secas e gélidas. Dava para ver cada tendão, tão descarnada era.
Tive um arrepio que me fez estremecer!
Ela percebeu e disse... A morte passou por aqui!
Nos ordenou que colocassémos os víveres na mesa da cozinha.
Agradeceu os alimentos e nos abençou. Voltamos tristes...
Naquela noite não fiquei para ouvir as conversas proibidas.
Fui para a cama de colchão de faquir e tive pesadelos. A carestia vestida de preto rezando um terço... Tinha as feições de Eulália, a viúva. Acordei molhada.
O primo estava alvoroçado!
Ouvi ontem que vão casar tua mãe..Prá que? prá ter um nome de homi. Mas  já tenho o meu nome. Não quero ter outro.
Nome de pai jumenta! Não tenho pai. Claro que tem, só não sabe onde tá.
Mãe disse que ele morreu de tuberculose.
E a jumenta acreditou? Para de me chamar de jumenta, se não te chamo de zarolho...
Ah, ah, du-vi-de-o-dô. Conto pra Dindinha que foi tu quem roubou um biscoito da vasilha.
Quem pegou foi você.  Tá...! Só que eu digo o contrário...e ela acredita em mim ...Ponto pra ele.  
Vão casar minha mãe com quem? Não quero ter nome de homem nenhum.
Apareceu um belzebu engomadinho, diz que morou em São Paulo e está só de passagem por aqui. Essa noite vê se não dorme jumenta, vamos pra debaixo da mesa para tu conhecer teu pai. Não enche...Zarolho! Vê lá hein ...alerta!
Belzebu chegou-se lá pelas horas passadas da Ave Maria, e a  avó, filha de Maria, rezava com o manto azul e o terço de contas de lágrimas de Nossa Senhora defronte ao altarzinho posto no cômodo da entrada, assemelhado a uma saleta. 
O louro girava a cabeça para ouvir a ladainha.
Era um homem, alto,  para a média local. De tez clara, vestido com um terno branco de linho todo amassado e encardido, botas de JecaTatú e uma camisa listrada azul clara, de punhos muito sujos.
Não vi seu rosto, pois quando entrou já estávamos nos nossos postos. Da  imagem da parede lançada pela chama da lamparina, vi que usava chapéu.
Após todos se sentarem ele o tirou e colocou a seu lado, fazendo lembrar a música da Pombinha Branca.....
Moço de terno branco, chapéu de lado...
Mamãe foi chamada e postada a seu lado, no banco de madeira. Causo vai e vem,  e, eis que vejo a mão do homem de terno branco, indo em direção à mão de minha mãe....
O primo me tapou  os olhos com suas mãos, a boca também. 
Fica quieta bruaca...sussurou no meu ouvido, cuspindo dentro.
Minha mãe recolheu a mão, colocando-a sobre a mesa.
O avô, na nonagésima versão do veado de ouro que falava, empolgado, fazia a dramatização e a sonosplastia, quando repentinamente, minha mãe levantou-se afogueada.
Meu pai, me perdoe a interrompência mas vou por minha filha no urinol. Se não... já sabe....chove na cama! 
O avó contrafeito, fumegou-a com o olhar. A sombra tirou o chapéu e coçou a cabeça. O caboclinho de 1,60 cm de altura, parcamente alimentado desde a mais tenra infância, agigantava-se quando interrompido ou contrariado.
Sua voz de trovão soava e a figura na parede, metia mais medo que quaisquer de suas assombrações.
Suas armas:  o olhar fulminante e um  facão feito por ele mesmo, amolado todos os dias, para diversas finalidades.
Este, ficava dentro de um alforje ou embornal, também confeccionado por ele, detrás da porta da  cozinha, de onde podíamos vê-lo.  
Vovó encaminhou-se vagarosamente em direção à porta, e a minha barriga gelou. Meu zarolho primo tinha os dois olhos totalmente fora das órbitas quando suplicou-me...Reza jumenta, tu sabe rezar? Vai sair morte aqui...
Dindinho caminhou três passos e se voltou para a mesa, seus olhos pararam nos nossos. Então, baixado o fogo inicial, determinou...
Nossa prosa acaba por aqui, vosmecê volte outro dia para assuntarmos mais.
Virou-se para minha mãe e ordenou... acompanhe este cidadão até a porteira. 
Tão logo saíram, Dindinha retirou-se sem uma palavra para o seu quarto.
Meu avô, postou-se em frente ao altar, fez o sinal da cruz ...
Os dois enxeridos para a cama já. Se mijarem, hão de se ver comigo! 
Voamos!  Benção vô!  
Em dois contados segundos, deitamos e adormecemos.
A cama de espinhos parecia pena de ganso. Acordamos num dilúvio.
Não se sabia quem fôra o campeão da noite.
Para nossa surpresa não havia nenhuma gente grande em casa. O louro desesperado andava de um lado pró outro: cadê o café do louro, cadê o café do louro?
O fogo apagado denunciava que haviam saído cedo ou  haviam passado a noite fora. O primo capeta estava preocupado, será que Dindinho fôra emboscar Belzebu?
O alforge não estava detrás da porta.
Fez um fogo, ferveu água, cozinhou umas folhas de capim santo e nos deu de beber a mistura com rapadura. Eu odiava rapadura, mas não reclamei. 
Sacudiu a goiabeira e os frutos que caíram deu-os ao louro. Café! café!  
Não tem café , louro. Santa mãe louro, não tem café!
Café!
Colocou um bocado de chá de folhas no bule de café e serviu ao louro na cuia.
Ele experimentou e continuou... café! Cade o café do louro? Infernus!
Já ia o sol a pino, e um calor de arder o pé, quando vislumbramos as três figuras que despontavam na trilha ao longe. Vinham cabisbaixos...
Minha avó chorava  e seu nariz estava vermelho. Minha mãe, parecia preocupada além de triste, e meu avô, por fim desabafou. Comadre Eulália, finou-se.
Aquele arrepio passou no meu cangote e dispersou-se por minha coluna. A barriga doeu. A morte passara por lá! Morrera há possivéis dois dias.
Sentada no mesmo local onde a havíamos visto pela última vez. A cuia de farinha e a lasca de jabá, haviam desaparecido. As telas não.
Por uma questão de valores as pessoas não comiam quadros.
A criançada fedorenta a mijo dispersou - se pelo quintal procurando arte para fazer. Alheios... Meu primo perguntou a que horas seria o enterro. 
O avô desatou os nós da rede, debaixo da goiabeira e informou que seria tão logo chegassem lá. Desembainhou o facão, cortou uma vara firme de bambú com um golpe só.
Vamos enterrar a defunta! Minha mãe apanhou uma enxada, deram adeus e voltaram. A avó ficara para fazer o café do louro e por o feijão no fogo.
O primo capeta olhou para mim...
Vamos ver a velha! Conheço um caminho mais perto, uma trilha que eu mesmo fiz. Vamos! Despistamos os menores como sempre e  a distráida  avó.
Começamos a correr!
Ele corria como o veado de ouro dos contos do avô. Minhas coxas grossas estavam assando de calor e do mijo noturno por lavar. Anda jumenta, se não eles chegam antes de nós...! Estou indo....
Passa galho, pula tronco caído, salta bosta velha dele mesmo. Cuidado c'o buraco!
E vamos nós...Ver a velha morta!
Tinha hora que eu parava para pegar fôlego e ele, capetoíde duns infernus, baixava o suspensório da única calçola que possuía e me mostrava a bunda descarnada.
Anda jumentinha da cidade....
Quando achei que ia morrer de garganta seca e falta de ar, anunciou que havíamos chegado. Quieta!
Estavámos na lateral da casinhola, um pouco antes do terreiro, como chamavam o quintal do entorno, e, dali vimos o vulto de Eulália.
Vou mais de perto e tu fica aqui.... 
Rodeando a casa, umas três ou quatro aves grandes e negras com um bicão virado...Meu primo tentou afastá-las com um galho, mas elas investiram contra ele. Minha barriga doeu tanto que resolvi ir  ao seu encontro. Estava com medo de ficar naquele matagal a espreitar.
Enquanto ele entrou na casa para fazer não sei o quê, aproximei-me do cadáver que exalava um cheiro ocre e nauseante.
 O corpo havia inchado e em alguns pontos o tecido do velho vestido estava rasgado...Pensei no quanto ela estava robusta...
Seus olhos cobertos de branco estava arregalados e seu polegar parado na conta enegrecida.
Um enxame de moscas azuis cobriam a boca e  olhos de onde escorriam líquidos fétidos...
Escancarei a boca para gritar, mas o que consegui foi vomitar o chá verde e a rapadura do café da manhã. Os três vigias de asas aproximavam-se de mim, quando o primo me apanhou pela barriga arrastando-me para o matagal. 
Como sempre fazia, fechou-me a boca pois Dindinho e mãe estavam chegando, desta vez, poupou-me os olhos....não sei porque.
Quisera não ter visto mais nada, mas o vi!
Minha mãe estendeu a rede no chão de terra enquanto meu avô fui buscar o cadáver. Bradia seu facão feito espada contra as aves.
Chegando-se ao pé do alpendre parou para ver o meu vômito recente. Seus olhos de lince buscaram-nos dento da matinha.
Depois, acho que em apnéia,  ajeitou os braços em torno da mulher morta e rija,e, de uma só arrancada pô-la no meio da rede, de lado.
Virou-se para respirar e vi sua cara de nojo. 
Minha mãe tirando o lenço que lhe cobria a cabeça, amarrou em torno da boca e nariz, e lançou mão de uma das enormes agulhas que meu avô confeccionava pondo-se a costurar a rede com um cadarço preto de se fazer mortalhas.
Os pontos eram grandes e mãe era hábil naquilo.
Em poucos segundos tudo estava fechado. Enfiaram a seguir, o bambú nas duas extremidades, ambos levantaram-no ao mesmo tempo e seguiram para o enterro, não se sabe onde. As renitentes aves negras, completavam o cortejo.
Antes de saírem meu avô voltou a olhar em nossa direção, como se a dizer:
Voltem para casa... vosmecês hão de se haver comigo!
O silêncio voltou a pairar sobre a choupana, porém o cheiro continuava firme.
O sol abrasador e inclemente queimava meus cabelos, minha pele, o nariz ardia e o estomâgo virava.
Eu vomitava ainda, quando o primo voltou com uma das telas.
Vou levar ....Sempre quis ter uma roça de melancias...!
Não respondi nada, apenas o acompanhava. Ele na frente, eu atrás vomitando, as coxas ardendo de assaduras...Começei a arrepiar de frio e caí.
A última lembrança que tenho, foi do olho infinito olhando para mim...
Acorda jumentinha!
Primo como se chama aquelas aves que parecem galinhas pretas que estavam rondando a comadre?
Cuspindo dentro da minha orelha ele gritou: ARIBÚ, repete comigo, ARIBÚ.
Aqueles bicho come gente e bicho morto. Aribú..., repete jumentinha...
Depois ouvi um choro soluçante e onada!
Passei uma semana "variando" como eles diziam entre febre, febrinhas e febrões.
Meu franzino primo me carregara nas costas por toda a extensão do caminho medido em léguas. Ele que aparentava ter 7 ou 8 anos, quando muito, e pesava uns 20 Kg, carregando um trambolho como eu que beirava os 45 kg, aos 5 anos de idade. 
Quando a fome apertava ele me deixava na trilha, subia numa ávore e apanhava ovos de passáros, engolindo-os inteiros, para poder continuar.
Chegamos quase ao anoitecer, sem que eu tenha me  lembrado de nenhum  outro detalhe.
Fui posta no catre de agulhas e ele levou uma cossa do avô. Apanhava-se por tudo e pelo nada feito. Optavámos então, por fazer sempre o tudo. Assim justificava-se a surra.

Meu primo tinha os pés feridos e cortados, o calçado que usava era a sola grossa de seu pé. 
Foram postos na salmora, os pés e seu dono. 
A salmora era outra tortura, pois salgava o que estava ferido, aumentando a dor. Se bem que a dor maior era na alma. Essa não tinha salmora que curasse. 
Nunca em toda a sua vida de 12 anos, tivera um sapato, mas incontáveis foram as vezes que fora posto a salgar.
Nos dias que se sucederam à morte de Eulália, Belzebu, frequentou a mesa da casa de Dindinho. Levou-lhe uma garrafa de Jurubeba Leão do Norte e ficavam bebericando. Só que, segundo o primo, as prosas haviam tomado outros rumos.
Ele estava falando de uma tal de política, pelo entendimento, prima irmã da carestia.
Apregoava a insurreição contra o governo dominante, a fome, a miséria, falta d'agua e todas as mazelas velhissímas companheiras de meu avô e dos sertanejos. 
Dindinho lhe botava os olhos de raposa velha e ficava remoendo as suas palavras. Estou lhe assuntando dizia...
Pelas observações atentas de meu primo, meu avô não estava gostando muito do ritmo da conversa, mas argumentava ....Vamos dar linha ao peixe.
Temos de ir às armas, nos organizarmos, derrubar o governo...
Que armas, o facão? que organização? a dos mortos de fome? das viúvas desdentadas? ou dos Aribús esfaimados? das piranhas restantes nas cacimbas do rio seco? ou ainda a dos meninos magrelas e abaixo do peso?
Belzebu calava-se entre tantas evidências de mau sucesso.
Dia seguinte, lá estava ele novamente, a bater na mesma tecla, a recitar a mesma ladainha, e a tentar pegar a mão de minha mãe, que se esquivava.
Porém, de todas as conversas fiadas e perdidas meu primo guardou uma...
Gente que não come não consegue raciocinar e estava nascendo uma sub raça fruto daquela fome. Uma raça nanica fadada ao fracasso e facilmente manipulavél pelo poder dominante.
Homens Gabirús de baixa estatura, de baixo peso e baixa capacidade de raciocínio.
Homens que não chegariam sequer a estudar e criariam famílias iguais, fechando assim um círculo, que podia ser eterno.
Deu como exemplo vivo, meu próprio avô e ele, meu primo, bem como ao restante das crianças que estavam pelo terreiro, com seus barrigões cheios de vermes de todos os tipos.
Aparentavam ter idades menores e rostos senis, fora a inteligência que não fluía. Vovó argumentou com ele, "que baiano burro já nascia morto"....e foi em direção ao alforje.
Nisso eu gritei...Quero comer mingau de aveia! quero tomar café com leite, pão e manteiga, macarronada com frango assado, quero maçã, pudim de leite moça, batatas fritas....No torpor, eu necessitava de um banquete!
Todos acorreram ao quarto fedido a mijo e então Belzebu deu a última estocada no coração de meu avô.
Que menina robusta e bem cuidada, que pele boa....Quantos anos tem esta criança ?
Vai fazer 6 anos em 2 de Abril com a graça de Deus! Belzebu: graça de Deus e alimentação farta!
Dá quase três deste pobre menino, apontando para o primo, pobre, capeta, zarolho, orfão e descalço.
Assunte-se e saia da minha casa já, trovejou o avó. Tá me chamando de quê?
Seu moleque! Avie-se e ponha -se daqui para fora, antes que eu lhe arranque os culhões como se faz a um porco. 
Belzebu retirou-se com seu indefectível terno branco encardido, sem se desculpar.
O bicho da verdade entretanto, começou a se propagar na  alma de Dindinho.
Havia algo de verdadeiro naquele converseiro todo. Restava saber o quê.
Quando eu já estava restabelecida, depois da benzedura de minha avó, Zarolho, já começava a chamar de jumenta e eu ja não via urubús no terreiro, nem eulálias no alpendre; mãe anunciou o fim das férias e o retorno à São Paulo.
Meu coração irradiava alegria e vi que o primo estava triste. O que foi primo?
Seus dois  olhos, o infinito e o direcionado marejaram. Não quero ser um gabirú...quero estudar e ser gente. Quero ir com para a cidade também!
Senti uma imensa dó que me doeu a barriga, como sempre!
Naquela noite, vovô resolveu chamar Belzebú, para tomar mais um gole de Jurubeba e explicar melhor o assunto.
Talvez agora ele pudesse entender, passado tantos dias ruminando.... Este viera sem hesitar.
É claro, que eu e Zarolho estavámos embaixo da mesa. Dindinho sabia disso e já era conivente. Meu avô à sua moda, era um libertário!
Chegou-se e ambos, cavalheiros quase civilizados, não tocaram numa só palavra do ocorrido.
Este passou a discorrer dos tramentos cirúgicos para os olhos do meu primo, dos vermífugos para todas as bichas que habitavam a barriga dos moleques, da necessidade da certidão de nascimento e as práxis de cidadania; uma outra parente da política.  Vovô começou a se empolgar novamente, até que súbito, vejo que Belzebú, estende a mão para os joelhos de minha mãe e começa a acariciá-los.
Mãe entretanto, já não oferecia resistência... e vez por outra repousava a sua mão na mão dele.
Começei a ver novamente os urubús, a comadre, a carestia, e a barriga doeu tanto que não pude evitar: avancei com os meus dentes na mão que saía de dentro da manga listrada do punho sujo,  e mordi...!
A mordida, fechada, de olhos fechados. O homem gritou... socorro!
Um bicho me mordeu.
Primo, tentava de toda a sorte, fazer com que eu abrisse minha poderosa mandíbula. Mas eu não soltava! Foi um Deus nos acuda. Vó rezava o credo, avô desembainhou o facão...Para usar em quem?
Os meninos menores, saídos da cama  puxavam minhas pernas e outros meus braços. E eu ali firme....Lembrei-me do cágado que quando morde, solta na próxima chuva, (causos de Dindinho).
Até que enfiaram dedos nos meus olhos e eu larguei minha vítima.
Dedo quase decepado e sangrando. Vixeeeê.
Virou bicho foi? Que é isso menina?
Não quero ser filha de Belzebu.
Porque tamanha raiva ? Ele pôs a mão na perna da .....
O tapa estalou, virou meu rosto para trás e eu caí no chão ao lado de Belzebu que dispencara do banco com as pernas prá cima.
Um gosto quente de sangue não sei de quem... 
Minha mãe caprichara! Não me dava o direito de torná-la kenga de tudo. 
Meu avó, traspassou o chapéu de feltro do homem com seu afiado facão e pô-lo na cabeça deste com a própria lâmina.
Acompanhem este homem até a porteira!
As crianças fedorentas lideradas pelo primo capeta, despacharam Belzebu.
Durante a noite, Dindinha botou sal nas marcas de quatro dedos da minha bochecha branca e me benzeu com uma santa que tinha uma cobra nos pés.
Não tenha raiva de tua mãe, ela me disse. Ela só quer o teu bem.
Não entendi direito, mas percebi que minha avó começava a gostar de mim.
Tú me promete, que não vai ter raiva de tua mãe?
Virei de lado e fingi dormir...

  Um homem gabirú e seu filho, duas gerações
             alimentadas diferentemente

Os meninos, os mais velhos ajudam a "criar" os mais novos 









Nenhum comentário:

Postar um comentário